Mais um livro lido do fantástico Gustavo Corção (1896-1978), sendo o seu único romance.
Publicado em 1950, o romance tem a forma do diário de um homem que está a beira da morte. O personagem principal (José Maria) é diagnosticado com leucemia, sendo-lhe previstos no máximo mais três meses mais de vida. A partir dessa notícia, José Maria começa a anotar pequenas ocorrências de seu cotidiano e as cada vez mais frequentes viagens interiores que empreende.
Lembra muito Brás Cubas de Machado de Assis, porém o narrador de Lições de Abismo ainda se encontra vivo, mas sabendo da iminente morte.
A força do autor está no discurso cheio de poesia e de raciocínios inesperados, desconcertantes. O conteúdo dramático, espalha-se em meio à constante digressão. Mesmo assim, esperam pelo leitor surpresas e revelações nas páginas que antecedem imediatamente ao desfecho, e daquelas bem tipicamente romanescas: adultério explicado, filho que não é filho.
Sem dúvida, o grande recado que Corção desenha nesta obra é a necessidade de conhecer-se. Algo tão acessível, como difícil; não por complexidade técnica, mas porque implica desnudar a verdade e, consequentemente, alavanca a obrigação de se corrigir, de mudar. “Não há maior fragilidade do que essa da pessoa que sobre si mesma se engana. Mormente quando esse engano‚ é arquitetado e sistemático. Consegue-se tudo, facilmente, da pessoa que vive representando um papel de sua invenção. Basta entrar no jogo. O ator solitário logo se anima quando um outro pega a sua deixa”.
Uma leitura fascinante que requer tempo para saborear, para pensar. E tomar notas. E voltar sobre as páginas, nem que seja para degustar o belíssimo e elegante uso de língua portuguesa. Sem pressa, como numa conversa de bar. A pressa, inimigo mortal da reflexão, que Gustavo Corção incarna até no modo de tomar um café: “Antigamente, o café‚ era lugar de passatempo vadio. Por um tostão alugava-se um camarote para o espetáculo da rua, ou instalava-se por meia hora uma tertúlia literária. Hoje, com a generalização do serviço a infusão perdeu a nobreza que tinha, e que consistia precisamente em servir de pretexto a coisas mais altas. O café‚ era secundário, era subordinado, mas ha certas subordinações que conferem maior dignidade que a autonomia. Hoje o café é autônomo. Toma-se por ele mesmo, com a frieza racional e funcional com que se ingere uma laxante ou um analgésico. Toma-se um café, egoísta, solitário, vertical”.